Com a deflagração da denominada operação Integration (inquérito policial 0022884-49.2024.8.17.2001, da 12ª Vara Criminal de Pernambuco), que investiga o crime de lavagem de dinheiro proveniente de jogos ilegais – e que resultou na prisão da influenciadora Deolane Bezerra e no indiciamento do cantor Gustavo Lima -, acirraram-se as discussões sobre a legalidade das bets e, sobretudo, das movimentações financeiras que delas decorrem.
Partindo da premissa de que, tal como o jogo do bicho (art. 58 do decreto-lei 3.688/411), as apostas online também tipificariam uma contravenção penal (art. 50 do decreto-lei 3.688/412), a autoridade policial do Estado de Pernambuco considerou, dentre outras linhas de investigação, que as movimentações financeiras decorrentes das bets poderiam configurar o crime de lavagem de dinheiro, previsto no art. 1º da lei 9.613/983, que consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.
Acontece que, recentemente, em 25/11/24, o Ministério Público Pernambucano requereu o arquivamento parcial do inquérito, ao argumento de que as referidas apostas já se encontram legalizadas pela lei 14.790/23 e pelas alterações promovidas nos arts. 29 a 33 da lei 13.756/18, que regulam a modalidade de apostas de quota fixa baseadas em eventos esportivos e on-line. Logo, se as apostas não caracterizam contravenção penal, não haveria que se cogitar de posterior crime de lavagem de dinheiro, por ausência de infração penal antecedente.
Seguindo essa linha de raciocínio – e olhando para o lado oposto da mesma moeda -, o Ministério Público defendeu, ainda, o prosseguimento das investigações no tocante à apuração de movimentações financeiras realizadas para ocultar ou dissimular recursos provenientes do jogo do bicho, mesclando-os com valores oriundos de outras atividades empresariais (as bets, por exemplo), para conferir-lhes aparência de licitude, o que poderia – como realmente pode – vir a caracterizar não apenas o delito de lavagem, mas também o de associação criminosa (art. 288 do CP4).
Pois bem, retornando à legalidade das bets, a lei 14.790/23, em conjunto com as alterações promovidas nos arts. 29 a 33 da lei 13.756/18, instituiu e regulamentou a modalidade de apostas de quota fixa, relacionadas a eventos esportivos e on-line, autorizando os operadores do mercado a explorarem essa atividade no Brasil.
Consoante o art. 2º, inciso I, da lei 14.790/23, entende-se por aposta o ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco, na expectativa de obtenção de um prêmio, sendo que o termo quota fixa está descrito como o “fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada” (art. 2º, inciso II, da mesma lei5).
O art. 29, § 1º, da lei 13.756/18, por sua vez, conceitua aposta de quota fixa como o sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais, no qual se define, no momento da efetivação da aposta, quanto o apostador poderá ganhar caso acerte seu prognóstico.
Socorrendo-se dos citados dispositivos, e invocando também o art. 3º da lei 14.790/236, que prevê que “as apostas de quota fixa (…) poderão ter por objeto I – eventos reais de temática esportiva; ou II – eventos virtuais de jogos on-line”, o Ministério Público Pernambucano pontuou que o legislador, ao conceituar e regular as apostas, acabou por derrogar o art. 50 do decreto-lei 3.688/41, assim redigido:
“Art. 50. Explorar ou estabelecer jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento ou não de entrada, constitui crime, com pena de prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos móveis e objetos de decoração do local.
(…)
§ 3º Consideram-se jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusivamente ou principalmente da sorte;
b) apostas em corridas de cavalos fora de hipódromos ou locais autorizados;
c) apostas em qualquer outra competição esportiva”.
Em outros termos, segundo o Ministério Público, a regulamentação das bets teria importado em abolitio criminis em relação às apostas vinculadas a competições esportivas, as quais, até então, permaneciam vedadas por tipificarem a contravenção de jogos de azar.
De tal modo, pugnou o Parquet pelo arquivamento da investigação, especificamente quanto ao crime de lavagem de dinheiro decorrente de apostas esportivas, devido à ausência de justa causa para o oferecimento de denúncia, em virtude da atipicidade da conduta.
Com efeito, independentemente das controvérsias morais, religiosas, psíquicas, econômicas e sociais que possam pairar sobre os jogos de apostas, a realidade é que, hoje, as bets estão permitidas e reguladas pelo legislador pátrio, sendo passíveis, inclusive, de tributação, por meio do imposto de renda (art. 31 da lei 13756/187) e da cobrança de “Taxa de Fiscalização” (art. 32 da mesma lei8). A despeito da existência de questionamentos sobre a legitimidade dessa arrecadação, tendo em vista possível ocorrência de bis in idem tributário sobre os prêmios obtidos, o fato é que o Brasil, enfim, reconheceu a realidade e, mais do que isso, a legalidade desse tipo de aposta, que, por isso, deixou de configurar a contravenção penal do art. 50 do decreto-lei 3.688/41.
Portanto, parece-nos acertada a manifestação ministerial que afastou a hipótese de lavagem de dinheiro envolvendo recursos financeiros oriundos das bets, dada a atipicidade da conduta antecedente.
De outro giro, a conclusão alcançada não impede a ocorrência do delito de lavagem quando valores advindos de condutas ilícitas estiverem mesclados com recursos resultantes das bets, ou quando as apostas forem utilizadas pelos operadores e empresas parceiras justamente para ocultar ou dissimular dinheiro obtido a partir de infrações penais anteriores (como o jogo do bicho), valendo, neste caso, destacar o cuidado que teve o legislador ao dispor, no art. 25 da lei 14.790/23, que “O agente operador de apostas deverá, na forma estabelecida pela regulamentação do Ministério da Fazenda, implementar procedimentos de: I – análise das apostas por meio de mecanismos de monitoramento e de seleção, com o objetivo de caracterizá-las ou não como suspeitas de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo; II – comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) das operações que apresentarem fundada suspeita de lavagem de dinheiro e de financiamento ao terrorismo”.
Tecidas essas considerações, resta-nos, agora, aguardar a conclusão e a finalização do inquérito, no curso do qual os conceitos aqui debatidos deverão ser ainda bastante abordados, e que, por sua relevância e ineditismo, já despontou como um importante paradigma para operadores, apostadores e juristas que se debruçam sobre o tema.
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