Quando poderíamos imaginar que, um assunto que até pouco tempo atrás, ainda era cenário de fortes embates políticos, filosóficos e, principalmente de batalhas judiciais, que acarretava, inclusive, em injustas prisões em flagrante de cidadãos comuns pelo crime de tráfico de drogas – justamente por ausência de regulamentação sanitária – fosse, finalmente, ser autorizado e regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em Resolução própria, que passou a autorizar a prescrição de maconha medicinal para fins terapêuticos, inaugurando assim, um grande passo na saúde do Brasil.
Com mudança de entendimento na nossa Corte Superior de Justiça que já pacificou o tema, a prescrição de medicamentos à base de cannabis sativa para fins exclusivamente medicinais, encontra-se prevista na Resolução da ANVISA – RDC n. 130/2016, que classifica a maconha como planta medicinal e inclui os medicamentos à base de Cannabidiol (CBD) e Tetrahydrocannabinol (THC) – os dois mais conhecidos canabinoides – que contenham até 30 mg/ml, no máximo, de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, que complementa a Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006), sendo atualizada para permitir a prescrição dos referidos medicamentos.
Os produtos poderão ser nacionais ou importados e precisarão estar em conformidade com as normas da Agência Reguladora competente, no caso, a ANVISA.
Para nós juristas, a surpresa não foi tão grande assim, isso porque a lei penal nunca proibiu o uso devido da droga e a sua produção autorizada. O uso medicinal já era permitido pela nossa Lei de Drogas, com previsão expressa no art. 2º, parágrafo único, que dispõe sobre a possibilidade de autorização do uso e produção da droga, desde que possua autorização das autoridades e com fins exclusivamente medicinais e científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização.
O que a referida lei veda e tipifica como crime, é o transporte, a posse, o consumo, a produção, importação, comercialização, dentre outras condutas, de drogas “sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Tal requisito é indispensável para que qualquer uma dessas condutas possam ser consideradas típicas, ou seja, criminosas, vindo a sofrer os consectários da legislação penal extravagante.
É o que chamamos, na esfera do direito penal, de elemento normativo do tipo. Sem esse dado essencial, não é possível responsabilizar alguém por crimes como o tráfico de drogas ou o porte de drogas para consumo pessoal, por exemplo, o fato seria considerado atípico, não podendo se falar em infração penal, uma vez que, com a autorização da autoridade competente, o indivíduo estaria respaldado pela excludente de ilicitude do exercício regular de um direito (art. 23, CP), para praticar condutas relativas à droga e sua matéria-prima.
Isso significa que, se uma pessoa adquire, comercializa, prescreve ou importa substância entorpecente prevista no rol da Portaria 344/1998 da ANVISA, com autorização legal ou regulamentar para tanto, sua conduta não se adequa materialmente ao tipo penal da lei, não há afronta ao bem jurídico por ela tutelado, que no caso da Lei n. 11.343/2006 é a saúde pública, não podendo, portanto, ser responsabilizado pelos crimes nela previstos.
Feita essas importantes considerações na seara do direito penal, então, como é feita essa prescrição da cannabis sativa para fins medicinais? Quais requisitos o médico, a clínica ou o hospital devem observar?
Essa prescrição deverá ser realizada por meio de dois requisitos indispensáveis:
1) Notificação de Receita A;
2) Termo de consentimento informado ao paciente
Importante ressaltar que, é o consentimento do paciente que legitima o ato médico, portanto, será através do termo de consentimento livre e esclarecido que o profissional ou a instituição de saúde por meio de seus prepostos, irá comprovar que cumpriu com o seu dever de informação, cientificando o paciente de todos os riscos e chances de sucesso e insucesso do tratamento indicado.
Vale mencionar ainda, que até a data de publicação do presente artigo, a ANVISA autoriza o uso de 18 fármacos para fins terapêuticos de medicamentos à base de cannabis sativa.
Tal regulamentação específica por parte da ANVISA, é um grande avanço na saúde do nosso país, e merece ser aplaudido, não só por uma questão de saúde pública, que sem dúvidas, irá impactar na qualidade de vida de muitas pessoas, mas também pelo nosso sistema legal, facilitando, tanto o acesso de médicos e pacientes aos medicamentos à base de cannabis sativa, que já se mostraram altamente eficazes no tratamento de várias doenças que já não tinham mais resultados com tratamentos convencionais, como é o caso de pacientes que sofrem de crises epiléticas, por exemplo, mas também, na desburocratização dos pedidos perante o Poder Judiciário.
O que antes, era feito pela via do habeas corpus preventivo, a fim de evitar-se um risco de o paciente vir a sofrer uma violação em sua liberdade de locomoção, pelo simples fato de buscar tratamento para sua saúde ou de um parente seu, correndo, muitas vezes, o grave risco de serem equiparados a traficantes de drogas, como já aconteceu com uma mãe que viajou até os Estados Unidos para buscar um medicamento à base de cannabis sativa para seu filho – uma criança que sofria de fortes crises epiléticas e não mostrava resultados significantes com os medicamentos tradicionais – tendo sua prisão em flagrante decretada por tráfico internacional de drogas quando desembarcou em solo brasileiro, conseguindo sua absolvição apenas em última instância em sede de Recurso Especial perante o Superior Tribunal de Justiça.
Ou seja, era um processo muito mais arriscado, demorado e extremamente oneroso, o que, infelizmente, não permitia o acesso ao tratamento a grande parte da população brasileira.
Estados como São Paulo e Tocantins já sancionaram lei que regulamenta a distribuição de cannabis pelo SUS, facilitando o acesso ao tratamento de um grande números de pessoas que não teriam recursos financeiros de conseguir os medicamentos por meio do antigo procedimento, garantindo uma melhora na qualidade de vida de boa parte da população através da terapêutica com a maconha medicinal, e isso é extraordinário.
A ANVISA possui algumas normas relevantes a serem observadas dependendo do procedimento que precisa ser adotado pelas instituições e profissionais da saúde. A Res. nº 327/19, por exemplo, dispõe sobre o procedimento para a concessão de autorização para a fabricação, importação, comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais.
Já a Res. nº 335/20 trata do procedimento para a importação de produtos derivados de Cannabis, por pessoa física, para uso próprio e mediante prescrição de profissional legalmente habilitado para tratamento de saúde, além da já mencionada Portaria nº 344/98.
A mudança de entendimento não se restringe à esfera da prescrição dos medicamentos para fins terapêuticos. No que tange ao plantio e o transporte de Cannabis Sativa, o atual e pacificado entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de ser cabível salvo-conduto para o plantio e o transporte de Cannabis Sativa para fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo subscrito por profissional médico especializado, e chancelado pela Anvisa.
Salvo conduto consiste em uma isenção, ou seja, uma autorização para um indivíduo praticar determinada conduta.
Decisão oriunda do julgamento da 6ª (sexta) Turma do STJ em sede de RHC n.147.169, e do Recurso Especial n.1.972.092, de Relatoria do Ministro Rogerio Schietti.
Decidiu ainda, a nossa Corte Superior de Justiça, colocando fim à antiga controvérsia, no sentido de que: as condutas de plantar maconha para fins medicinais e importar sementes para o plantio não preenchem a tipicidade material, motivo pelo qual se faz possível a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento. Assim decidiu 5ª Turma do STJ no julgamento do HC 779.289/DF, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
Sabemos que a saúde no Brasil ainda tem muitos aspectos a evoluir, mas não podemos deixar de celebrar tais reflexos positivos resultantes das mudanças de entendimentos jurisprudenciais e de regulamentação, dando espaço para um novo cenário na qualidade de vida dos cidadãos brasileiros e dos profissionais e instituições de saúde, que terão mais segurança e liberdade para ministrar o melhor tratamento para seus pacientes, sem deixar de citar, as empresas que investem em pesquisas, matérias-primas e comercialização dos produtos à base de cannabis sativa, que sem dúvidas, não medirão esforços para investir ainda mais em suas matérias-primas beneficiando muitas pessoas com isso.
O futuro da saúde no Brasil, de fato, parece promissor!